Passa boi, passa boiada

 

Existem muitas coisas que caracterizam este País. Entre elas, podemos citar a tolerância com que nós, brasileiros, aceitamos as “transgressões leves” ou, se preferir, os pequenos delitos. Trata-se, além do futebol, samba e carnaval, de uma instituição nacional.

 

Vou iniciar este editorial citando os mais comuns e simples:

 

As famosas festinhas que não respeitam horários e incomodam os vizinhos.

Furar filas nos mais diversos locais onde elas se fazem necessárias e ainda passar por esperto.

Pior, pedir para que um conhecido – que coincidentemente está lá na frente – compre o ingresso. Claro, essa pessoa tem um compromisso urgentíssimo e todos os que estão atrás hão de entender. Este é o famoso fura-fila indireto.

Tem aqueles que, ao primeiro sinal de engarrafamento, põem o carro no acostamento.
Tem aqueles que “levam” pequenas lembranças de hotéis e companhias aéreas. Você que não leva nada (burro) está pagando por esses custos, sabia? As empresas, que não são burras, agregam esses valores nos preços finais.

Tem os que pagam metade da tarifa do ônibus ao “acertarem” esse valor com o trocador e passam por baixo da roleta. Detalhe: todos os demais passageiros estão vendo isso.

Tem pai que condena veementemente a cola, desde que ela seja praticada pelo filho do vizinho. Se o dele assim proceder, é esperteza.

Dessas pequenas transgressões, podemos evoluir para mais algumas. Nada, também, muito sério:

 

Aquele dinheirinho que a gente dá para o guarda “esquecer” aquela infração de trânsito insignificante.

O varejista que se aproveita da boa fé do cliente sabendo que este já não mais realiza pesquisa de preço na concorrência. Você acha que isso não acontece? Então vai ver que a famosa expressão “freguês de carteirinha” nasceu de geração espontânea. Aliás, em que outro país do mundo, além do Brasil, a palavra “freguês” é sinônimo de “otário”?

Tem os que pregam o elevado índice de malandros que habitam o nosso Congresso Nacional, mas que não perdem a oportunidade de comprar um CD pirata na feirinha da cidade.

Aliás, o mesmo lojista que denuncia os vendedores de CDs piratas pratica o famoso caixa dois. Acho que ele se baseia no ditado, famoso, de que ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão.

 

Como crimes, sejam eles pequenos ou não, quase sempre mantêm conexões com outros crimes, chegamos a coisas do tipo:

 

Durante a campanha do desarmamento, uma idéia maravilhosa, houve pessoas que construíram armas caseiras com o intuito de faturar um “extra”.

Várias pessoas se apresentaram como vítimas do desabamento do Palace II. Queriam ver se faturavam um “extra”. 

E o famoso apresentador do SBT que autorizou uma falácia para milhões de telespectadores e continua livre, leve e solto.

Barbaridade, cansei! A cultura do trambique, só o leve, claro, está tão arraigada em nossa sociedade que ser um cidadão modelo exige que se reme contra a maré ou que se beire a santidade. No jargão popular, quem optar pela correção passa por otário, mesmo.

Há dez anos, vivi nos Estados Unidos por um ano. Lembro-me da péssima visão que os gringos tinham de nosso País. Muitas vezes me vesti de verde e amarelo e defendi nossas cores. Desisti quando soube de duas histórias, entre tantas outras:

Brasileiros que viviam em casa alugadas, antes de retornarem à amada pátria, convidavam a comunidade brazuca a usarem o telefone para ligações internacionais. Cada ligação, não importava a duração, custava cinco dólares. Formavam-se filas enormes. Azar do gringo burro quando a conta telefônica chegasse. Eles já estariam a quilômetros de distância, rindo da história e classificando os americanos de otários.

Brasileiros faturavam um “extra” nas terras do Tio Sam vendendo jornais. Aparentemente, nada mais nobre que o trabalho suado de cada dia. A verdade: os brazucas roubavam os recipientes que acomodavam cerca de vinte diários. Como? O americano pode adquirir seu jornal depositando o valor em moedas no recipiente e ele mesmo o abre e retira seu exemplar. Os brazucas, claro, pagavam apenas por um e se apropriavam dos demais 19. Saíam rindo e chamando os americanos de otários, fregueses de carteirinha.

Vem cá, se somos tão espertos, tão malandros, por que continuamos a viver em um país do terceiro mundo e eles tão burros, tão otários, fazem parte do primeiro mundo? Por favor, caro leitor, com tudo o que exemplifiquei aqui não venha me dizer que a culpa é “dos hôme”, dos políticos, ou só deles. O buraco é mais embaixo...

Para nós, brasileiros, a cultura do trambique é positiva, forte. Não à toa, a figura do malandro virou até ópera. Tanto é verdade que passei a diferenciar esperteza de inteligência, apesar de serem sinônimos. Mas, para este País, essas palavras (e seus significados) têm a obrigação de serem diferentes.

Para mim, esperto é o cidadão que vive de pequenos golpes e vai passar toda a sua vida pensando no curto prazo e escapando de seus perseguidores. Como o personagem Sísifo da mitologia grega.

O inteligente é aquele cidadão que vai desenvolver sua vida de forma a não ter de aplicar pequenos golpes nem passar todo o seu tempo tendo de escapar da lei. Ele vive para o longo prazo e quer dormir de consciência tranqüila. Por mais que, muitas vezes, passe por burro, freguês e otário. Aliás, como pensam os ingleses, os americanos, os japoneses, os suecos, os alemães, os canadenses, os belgas, os holandeses, etc.

 

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